segunda-feira, 9 de novembro de 2009

«Falta de intimidade no parto viola direitos humanos»

Texto: Maria Jorge Costa   
13 Março 2009
Image Acredita que, para ajudar um bebé a nascer, é preciso os médicos colocarem-se no lugar da mulher. Darem-lhe amor. Gerd Eldering veio a Portugal ajudar os profissionais da maternidade Alfredo da Costa a desenvolverem uma unidade de parto natural. À PAIS & Filhos falou da revolução que as mulheres têm de liderar.



Quando começou a fazer partos naturais?
Eu não faço partos, quem faz os partos são as mulheres grávidas.
Sou chefe de um hospital em Bensberg, perto de Colónia (50 km). É um hospital médio, não é privado. Comecei em 1980. Em 1979 tinham menos de 200 nascimentos por ano. Eu vinha de um hospital muito grande com mais de dois mil nascimentos por ano e mais de quatro mil cirurgias, onde era o número dois da estrutura. Este hospital tinha poucos partos e era bastante mais pequeno, mas, por razões familiares, eu queria estar perto de Colónia. Mudei-me para Bensberg porque o meu anterior chefe queria parar de trabalhar e eu decidi que estava na hora de fazer algo novo.
É preciso recordar que, na década de setenta, a tecnologia na saúde materna mudou muito. Introduziu-se muita técnica no sistema de nascimentos para se conseguir diminuir a morbilidade e mortalidade perinatal. Mas, no meio dessa preocupação, os médicos esqueceram-se das mulheres.
Na Alemanha, no final dos anos setenta, as mulheres exigiram decidir o que seria feito com elas durante o parto, recusando que a decisão ficasse nas mãos dos médicos ou das parteiras. Ao mesmo tempo, o médico Frederich Leboyer escreveu o livro «Parto não violento», ao qual tive acesso, e percebi que havia muita coisa que podia mudar. O livro fala sobre parir em liberdade e aí apercebi-me das inúmeras coisas que fazíamos nos partos e que, sei hoje, eram absolutamente desnecessárias.

Por exemplo?
Rapar os pêlos, administar o clister, abrir uma veia a partir das 38 semanas para facilitar a indução do parto. Se for antes das 38 semanas faz sentido porque se trata de um parto prematuro e pode revelar-se necessário. Pensando como Leboyer, decidi que não seria possível fazer nada sem evidência médica comprovada. Se a intervenção não for necessária não se deve fazer porque isso só fará com que surjam dificuldades. Se se provocar o parto às 38 semanas, sem qualquer necessidade clínica, estaremos a contribuir para complicações nos pulmões do bebé e muitas outras que sabemos que podem surgir. Nós, médicos, sabemos isso muito bem.
Por isso, no hospital de Bensberg acabámos com esse tipo de procedimentos e passámos a esperar pelo início das contracções. A partir das 40 semanas de gestação iniciamos uma vigilância mais apertada.

Como é que mudaram?
Olhamos para as mulheres e para o bebé. Se houver algum risco é evidente que temos de intervir. O sistema médico é muito eficaz mas temos de pensar noutras coisas quando falamos de nascimento. Penso que, para dar vida a um bebé, há duas condições: a receptividade e o acompanhamento têm de ser mais importantes do que a medicina. A medicina é uma ferramenta, que tem de estar em boas condições, mas a que só se deve recorrer em caso de necessidade. E é isso que fazemos na nossa clínica. Deixamos o parto natural decorrer de forma natural. Pomo-nos sempre no lugar da mulher ou do bebé. Será que nós íamos gostar que nos fizessem o que nos propúnhamos fazer ao bebé ou à mãe?
Quando eu me imagino a nascer é evidente não que não quero que primeira pessoa a pegar em mim tenha luvas de borracha. Quero que seja a minha mãe, porque é ela que eu conheço. E quero que a minha me olhe e me encoste ao peito dela aumentando a nossa vinculação. Não quero que me ponham a sonda, nem que me façam aspersão ou me aspirem, se não precisar de nada disso. Não quero nenhum procedimento de rotina não necessário. Desde 1980 que não aspiramos as crianças e nem por isso temos mais patologias.

O pediatra vê o bebé no colo da mãe?
O pediatra teve de aprender mais ainda do que nós. Na Alemanha é raro haver pediatras no nascimento. O pediatra nesse momento é o ginecologista/obstetra que tem formação específica para esses primeiros minutos e, sim, observa o bebé no colo da mãe.

Esse é um procedimento da clínica Bensberg ou está generalizado na Alemanha?
Fomos muito copiados por outras maternidades do país. Muitos colegas médicos vieram a Bensberg ver como fazíamos e levaram o modelo para os respectivos hospitais ou clínicas. Não aprendem lá a utilizar a tecnologia mais avançada. A formação que tiveram foi no sentido dos procedimentos para um parto humanizado. E o que é bom neste sistema é que, como a taxa de natalidade baixou cinco por cento por ano na Alemanha, as maternidades viram-se obrigadas a entrar em concorrência umas com as outras para atrair as mulheres. A humanização do parto foi e tem funcionado como uma das formas de atrair mulheres para terem os filhos em maternidades que promovem os partos naturais.

A administração central ou federal incentiva o parto natural?
O Estado alemão nunca interferiu nisso.

Faço a pergunta porque, naturalmente, um parto medicalizado é muito mais caro do que um parto natural.
Mas isso depende da opção de cada clínica. Muitas fecharam por causa da quebra da natalidade. Por isso, as que se querem manter-se abertas têm de criar ambientes atraentes. Na Alemanha, os hospitais têm autonomia administrativa e financeira, se pagarem os impostos e não houver subida da mortalidade perinatal. O problema para os hospitais-maternidade é haver poucos nascimentos, porque o número de nascimentos é que determina o regresso dessas pessoas ao hospital onde tiveram os filhos, na eventualidade de qualquer problema de saúde posterior. Para a viabilidade financeira de um hospital, é muito importante que haja mais nascimentos.

O hospital é rentável se tiver mais nascimentos?
Sim. Quando vejo tantos seguranças na MAC, pergunto-me quem paga.

É o orçamento da maternidade, atribuído pelo Estado.
Nós também recebemos dinheiro do Estado e gerimo-lo como melhor entendemos.

Claro que perguntar-lhe se é possível ter um parto natural em ambiente hospitalar já está mais do que respondido.
No nosso hospital temos um centro de nascimento que é só gerido pelas parteiras. Dentro do hospital.

Se surgir alguma complicação, o médico é chamado ou a mulher é transferida?
Primeiro o médico é chamado, avalia e logo se decide o que fazer. Se for necessário intervir, transfere-se a grávida para um bloco de partos.


O parto natural precisa de tempo. Algumas vezes muitas horas.
Entre 10 e 12 horas.

Em Portugal não temos parteiras como na Alemanha. Sem ser os médicos, temos os enfermeiros parteiros. Como é possível que os profissionais de saúde acompanhem o tempo que demora um parto? Na vossa clínica é fácil porque foi montado o serviço dessa forma. Mas é possível multiplicar o modelo? É que a hora de trabalho de um enfermeiro é cara. Já para não falar do tempo de trabalho de um médico.
Os médicos não estão presentes durante o trabalho de parto! São as parteiras ou as enfermeiras. As enfermeiras parteiras não são tão caras como os médicos. Não vejo problema nenhum. Não se pode substituir o acompanhamento pela medicina. Se o acompanhamento for feito por um médico, isso pode ser contraproducente. É o que acontece, por exemplo, com os medicamentos. Todos têm contra indicações. O acompanhamento da grá-vida, se for em excesso, também tem contra indicações. Os médicos estudam sempre a patologia e não a fisiologia.

Por que acha que os profissionais de saúde são tão cépticos em relação ao parto natural?
Porque têm medo das mulheres, têm medo da proximidade. Por isso afastam-se o mais possível, criam um mundo à sua volta e sentem-se protegidos por isso. Mas eu posso dizer, pela minha parte, que, pelo facto de ter posto a medicina no seu devido lugar, abri os meus horizontes. Também tem a ver com questões etéticas e com o medo da justiça. Isto não acontece só na Europa do Sul. Na Alemanha também. Muitas vezes os médicos convencem-se de que o parto natural é perigoso e se alguma coisa correr mal vão ter os advogados à perna.
Sinto muitas vezes que não sou bem compreendido, porque na clínica tratamos o parto patológico da mesma forma que tratamos o parto natural: pomo-nos no lugar da mulher. Amamo-la e pomo-nos no seu lugar na medida do possível. Não posso dizer que assistimos partos de uma maneira natural. Isso não faz sentido. Assistimos sempre da mesma maneira. Não posso dizer a uma mulher: ‘quer um parto normal, vai para o lado dos partos normais, mas se de repente alguma coisa correr mal vai para o lado dos partos não normais’. Do meu ponto de vista este modo de encarar o parto está errado desde o início.
Temos de ser empáticos. Compreender as mulheres, os companheiros, as crianças. Deste modo, temos um parto normal mesmo que se torne um parto intervencionado.
Quando vejo que, aqui neste hospital, os irmãos e os pais só podem entrar a determinadas horas, não acho isso normal. Eles têm de ter a oportunidade de vir ter com a mulher e com o bebé em qualquer altura.

Por isso muita gente vai para o privado para poder ter visitas sem limitações de horário. Mas depois aí há o problema das cesarianas...
Desde 1982 que assistimos partos na água e a pessoa que moderou a discussão na formação que dei no Porto [na véspera desta entrevista] disse que a maternidade onde trabalha está disposta a mudar o sistema para o parto humanizado desde que haja estudos científicos alargados. Há imensos estudos de partos na água, nós próprios fizemos alguns.
Mas os argumentos não podem ir por aí, porque também não há nenhum estudo que indique que se devem induzidis os partos às 38 semanas. Não há nenhum estudo que diga que é bom ter à volta de 40 por cento de cesarianas. Acho que também não há nenhum estudo sobre a assistência do parto com ou sem emoção. Nós sabemos que a criança é dependente da mãe, seja em termos físicos, seja ao nível das emoções que a mãe sente. E sabemos que o modo como lidamos com a mãe em termos emocionais é o modo com que estamos a lidar com a criança. Acho que, em muitos hospitais portugueses, há muita violência: a privacidade não é prioritária. Vi salas de parto, que deviam ter um ambiente íntimo, com um vidro enorme na porta, por onde qualquer pessoa pode espreitar.

E há ainda a entrada de internos que entram, avaliam, vêem, etc.
Acho incrível e inaceitável esse tipo de situações e estou convencido de que se fosse apresentado na União Europeia, haveria consequências. A falta de intimidade dessa forma viola os direitos humanos.

Quando se fala de humanização de parto ouvimos frequentemente, da parte das grávidas e de alguns médicos, os receios de complicações e riscos.
É por isso que eu não falo em nascimento alternativo mas complementar. Nós fazemos o nascimento humanizado desde 1980 e no início tínhamos adversários, mas com o tempo foram-se aproximando da nossa filosofia e vão à nossa clínica com vontade de aprender como se faz. Mas o que é preciso é uma revolução da mulher.

As mulheres foram intoxicadas com o avanço da tecnologia nos nascimentos. A mensagem que passou foi que só com a tecnologia ao serviço dos partos se garantiam nascimentos seguros. A única forma de assegurar que se reduzissem os números de morbilidade pré-natal e perinatal era o parto ser no hospital e as mulheres estarem rodeadas de máquinas. As mulheres ficam sem saber o que fazer porque os médicos continuam a passar a mesma mensagem.
Mas isso é mentira! Esses médicos não conhecem as publicações mais recentes. Ou talvez eles conheçam mas não querem utilizar esses conhecimentos porque perdem poder. Digo isto sendo eu médico.
A nossa mortalidade e morbilidade perinatal não é mais alta do que noutras clínicas. Na Alemanha há um estudo feito regularmente para comparar as clínicas e hospitais e a conclusão é essa mesma.

Se lhe aparecer uma grávida informada, esclarecida e que mesmo assim quer fazer uma cesariana, o que faz?
Nós aceitamos o que as pessoas dizem. Conversamos com a mulher, explicamos exactamente a diferença de procedimentos, os riscos e consequências e se mesmo assim ela insistir na cesariana, não nos opomos. Há mulheres que têm medo do parto e se nós não conseguimos ajudá-la a sair desse medo, não seria empático da nossa parte obrigá-la a ter um parto natural.

O facto de a mulher ser a protagonista do seu parto deve dar-lhe o direito de poder escolher um parto ultra-medicalizado.
Naturalmente. Não é o nosso parto, é o parto dela.

Quando foi a última vez que fez uma episiotomia?
Em todos os partos instrumentalizados (fórceps, ventosas) quase sempre torna-se necessário fazer uma episiotomia.

É frequente recorrer a esse tipo de intervenção?
Temos uma taxa de oito por cento no hospital. Só fazemos quando percebemos que o períneo vai rasgar, o que pode ser perigoso até para uma próxima gravidez.

Em Portugal a indução de parto e a administração da ocitocina sintética é quase uma prática normal.
Isso é terrível. É um modo ditatorial de assistir o parto. Aceito a cem por cento a medicina, é absolutamente maravilhosa, salva vidas, mas só uso a técnica quando há necessidade. E quando tenho de recorrer à técnica, explico à mulher por que é que tenho de o fazer e o que vai acontecer.
As mulheres são fortes e nós temos de receber essa força e ampliá-la. Temos de lhes explicar que normalmente o parto é assim mas que, neste caso, há isto ou aquilo que não está a correr tão bem e por isso temos de recorrer à medicina convencional que temos à disposição. Isso permite às mulheres manterem a sua dignidade e a auto estima mesmo em situações médicas complicadas.

Quem é Gerd Eldering
Médico especialista em ginecologia, obstetrícia e perinatologia do Instituto de Citologia do Centro de Formação de Bensberg no Hospital Vinzenz-Pallotti (Alemanha). Gerd Eldering tem 65 anos, naceu em Colónia, Alemanha. Em 1980 assumiu a direcção de  um pequeno hospital de Bensberg - a 50 quilómetros da mesma cidade -, levando a cabo uma profunda alteração na maternidade e adoptando como ponto de partida o parto natural. Eldering é um dos primeiros médicos a acolher o parto na água como uma das forma de assistir o nascimento e, em estreita colaboração com a parteira Sabine Frieze, decidiu criar uma escola de parteiras no Hospital de Bensberg.
A vinculação precoce entre mãe e filho é uma preocupação central deste médico que, em 1982, começou a assistir partos na água.
Em 1989 assumiu a direcção da escola de parteiras do hospital de Bensberg. A formação alargou-se aos médicos e procura formar técnicos com os mais modernos métodos de assistência do parto natural num ambiente seguro.


«A MAC vai instalar uma nova área de parto natural», revela o responsável da maternidade, Jorge Branco

O que o levou a convidar Gerd Eledering para fazer uma acção de parto natural?
Incentivar os profissionais de saúde a aceitar o parto natural, respeitar as pessoas que querem esse tipo de  parto, e que, por vezes, não tem as melhores condições para o fazer, e desmistificar conceitos errados que alguns profissionais ainda têm em relação ao parto natural.
O facto de ele ser médico foi determinante para a acção na MAC?
Claro que foi determinante, já que a população alvo é também a dos médicos, que, por tradição, são os mais renitentes na prática do parto natural.
O que é que a MAC está a fazer de concreto no sentido da desmedicalização?
A MAC tem um quarto adaptado ao parto natural com uma roda de partos e bolas de Pilates. Para além disso,  publicámos as «Condutas durante o trabalho de parto e parto» que prevêem, por exemplo a ingestão de líquidos durante o parto, a estimulação da amamentação e a prática da deambulação.

Todos os profissionais vão ter formação para assistir partos naturais?
O parto natural requer uma formação prévia. Os profissionais de saúde eventualmente a colocar numa área de parto natural serão recrutados por voluntariado e serão  devidamente formados.

Como sabe, no hospital gerido por Gerd Eldering, a maioria das mulheres tem os filhos no centro de nascimento, organizado por parteiras. A MAC quer ter um centro de nascimento?
A MAC prevê instalar uma nova área destinada ao parto natural, separada do actual Bloco de Partos, dando assim à utente a hipótese de escolher aquela que mais deseja.
Na clínica de Bensberg a taxa de episiotomia é de 8 por cento. Qual a taxa na MAC?
Temos taxa de episiotomias que se situa entre os 37 e os 40 por cento.

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