segunda-feira, 24 de agosto de 2009



Quem tem medo de parto normal?
Sex, 21/08/09
por Isabel Clemente



A julgar pelas estatísticas, “muita gente” é a resposta correta ao título deste post. O número de cesáreas realizadas no país continua subindo ano após ano. Se, na rede privada, passa dos 80% dos partos realizados, na rede pública, onde o índice costuma ser bem mais baixo – mas ainda assim acima do razoável -, os partos cirúrgicos continuam a subir. Em 1998, 28% dos partos realizados em hospitais públicos foram cesáreas. No ano passado, o percentual estava em 33,25%, segundo o Ministério da Saúde.

Por que isso está acontecendo? A primeira consideração - que nos serve apenas de contextualização - é que se trata de uma tendência nos países industrializados, o que, no Brasil, fica mais patente nas grandes cidades.

Questionada, a coordenadora da área de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, Lena Peres, aponta várias questões relacionadas à baixa popularidade do parto normal. Listo abaixo as principais explicações dadas por ela:

- A cesárea é vista como um bem de consumo, tanto que ela acontece mais onde a coisa é paga (rede privada). Nem médicos nem hospitais querem perder tempo com o parto normal, que tem o seu próprio ritmo, nada industrial;

- A formação médica hoje no Brasil está muito voltada para os partos cesáreos porque é a realidade dos hospitais-escola. Quase todos são centros de referência para gestações de risco, o que, traduzindo em bom português, significa partos cirúrgicos, com dia e hora marcados:

- Muitos planos de saúde também costumam pagar mais aos obstetras pela cesárea – o que é um contra-senso, porque o profissional tem que se dedicar muito mais ao parto normal, em termos de disponibilidade;

- A desinformação da parturiente. Duas pesquisas – uma realizada em parceria pela Fiocruz com a Agência Nacional de Saúde, órgão responsável pela fiscalização e regulação dos planos de saúde no país, e outra pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ambas do ano passado – revelam, num universo de gestantes, que 70% delas gostariam de ter um parto normal, quando sondadas no início do pré-natal. Às vésperas de dar a luz, apenas 30% mantêm a preferência. Para Lena Peres, “ou é desinformação ou um processo de convencimento do profissional de saúde que as atenderam”.

11 de agosto, 19h - Estou com 41 semanas de gestação e me perguntam diariamente quando essa criança vai nascer. Parece que logo. Acabo de deixar o consultório da médica. Estou com 3 cm de dilatação sem ter sentido nenhuma dor. “Só faltam 7”, comemora o marido, exultante. Otimista, completa: “Quem sabe você chega a 8 sem sentir nada?”. Quem sabe, quem sabe. A médica pergunta se eu quero acelerar o processo com um “toque”. Eu, ela e meu marido nos entreolhamos. “Precisa?”, perguntamos. “Não tem nenhuma necessidade. Podemos esperar porque está tudo bem com vocês duas”, me responde ela. “Então deixa essa neném chegar na hora dela”. Fomos embora.

As cesáreas são um avanço da medicina moderna. Salvam vidas porque, em alguns casos, são a única opção. Mesmo quando não são a única opção, acabam sendo a escolha de muitas mulheres por motivos variados e, como toda escolha, implica trocas. Tem gente que prefere enfrentar uma hora na cadeira do dentista sem anestesia para não passar horas depois com a bochecha dormente. Conversei em certa ocasião com uma moça com síndrome do pânico. Naquela situação, ela achou mais prudente marcar a cesárea, temerosa de um ataque durante o trabalho de parto. As prioridades pessoais são inquestionáveis. É preciso dizer também que dor não é algo fácil de encarar, porque é intraduzível, incomparável e o limiar de cada um, um universo insondável. Somos treinados para buscar o prazer, o tempo todo. O que dizer da dor? Esse incômodo que parece nos tirar do eixo, de si, do confortável? Só não faz sentido acreditar na máxima de que “a dor do parto é a pior que existe”. Me pergunto se o autor de suposto conhecimento sentiu no próprio corpo todas as dores possíveis a ponto de compará-las. Não que seja uma delícia, mas não tem gestação sem sacrifícios. A mulher se transforma do início ao fim, ou melhor, ao pós-parto.

Médicos adeptos de práticas humanizadas no atendimento obstétrico defendem o parto normal, porque cirurgia sempre envolve certa dose de risco. Fora a questão da recuperação da mãe, mais fácil depois de um parto normal. Uma semana depois do parto, meu útero – que se distendeu por nove meses - não é sequer palpável.

12 de agosto, 3h – Na mesma noite, não consigo dormir. Eu e minha bebê estamos agitadas. Durmo às 4h para acordar quatro horas depois. Às 9h, percebo contrações ritmadas e aviso meu marido, por telefone, no trabalho. Ele volta e vamos para o consultório de novo. Às 11h30, a médica constata que já estou com 5 cm de dilatação. “Metade do caminho!”, comemoramos. Como diante da obstetra as contrações cessam, recusamos a proposta de fazer logo a internação. Eu queria tomar banho, almoçar… Vamos em casa e nos encontramos às 14h, pode ser?Combinado.

O excesso de cesáreas é preocupante do ponto de vista de saúde publica pelos gastos e riscos desnecessários. Custam mais aos hospitais públicos e respondem por índices lamentáveis, como o de morte materna a elas associadas e a prematuridade. Bebês tirados antes do tempo estão mais sujeitos a doenças respiratórias. “Dos cinco casos de morte materna registrados este ano na Paraíba, até maio, quatro estão relacionados à cesárea”, diz Lena, do Ministério da Saúde. “O Brasil é um dos campeões em morte materna, é um absurdo”, diz.

A França, por exemplo, onde o índice de cesáreas (18% dos partos) está bem abaixo do brasileiro, voltou a incentivar o parto domiciliar, numa tentativa radical de tirar dos hospitais os nascimentos de gestações sem risco. A hospitalização dos partos é um processo recente na história da humanidade e, na opinião de estudiosos, tem a ver também com o movimento feminista que bateu de frente com preceitos perpetuados pela religião, como o de que as descendentes de Eva estavam condenadas a sofrer para colocar seus filhos no mundo. Quando surgiram drogas capazes de jogar por terra o tal do sofrimento, a solução já estava dada. Vamos parir, sem dor! Foi o pontapé inicial para um processo de hospitalização do parto e de afastamento das parteiras, rotuladas a partir de então como pessoas inabilitadas. O documentário The Business of Being Born aborda essa questão. O filme alterna depoimentos de médicos, parteiras e, entre uma informação séria e outra, mostra a encenação cômica de um parto em que os médicos, sempre muito durões, gaiatos e decididos, dizem para a parturiente: “você não está qualificada para fazer isso. Deixe com a gente!”

12 de agosto, 13h. Com muita pena, desisto de comer o estrogonofe. Os intervalos das contrações não são suficientes para eu mastigar e engolir. Sempre fui lenta para comer. Enquanto minha filha mais velha se arruma para ir à escola, corremos com bolsas e documentos para a porta. Aviso o que está prestes a acontecer. “Que beleza, mamãe! Ela vai chegar hoje!”, reage minha primogênita à notícia de que a irmã está para nascer. “Mal posso esperar para ver a carinha dela…”, diz a pequena. Saio de casa com aquele sorriso na memória, enquanto a minha memória também se encarrega de me lembrar como isso dói. No caminho, também abolimos a ideia (de jerico) de passar no caixa eletrônico. Na porta do hospital, esbarramos na burocracia. Não me deixam ir para a maternidade enquanto não preencher as guias de internação. Falta carimbar, registrar, selar, telefonar, rotular. A mulher da recepção me diz que “está tentando ajudar”. Lembro do carimbador maluco do Plunct Plact Zum, que não queria me deixar ir a lugar nenhum. “Escuta, estou em trabalho de parto, avançado, preciso subir!”. Como resposta, me perguntam o CEP, depois de fazer a mesma pergunta pro meu marido ao meu lado. “Você tá falando sério? O CEP!!??? Você não pode copiar a ficha dele na minha? Ela perguntou o meu CEP???”, reajo, perdendo a paciência. Ando de um lado para o outro como uma onça enjaulada.

Alguns mitos acabam estimulando e sustentando a necessidade de cesárea, mesmo quando ela é perfeitamente dispensável, na opinião do obstetra Frederico Coelho, de Brasília. O mais comum é que “uma vez cesárea, sempre cesárea”. “Não é verdade. O cuidado que se tem é não usar hormônios artificiais para estimular as contrações porque, com o estímulo, as contrações vêm mais fortes do que o normal, o que pode representar uma ameaça para um útero que já foi suturado”, explica. Outro mito é o da lesão vaginal. “O músculo dessa região é próprio para fazer esse esforço”, diz Lena, do Ministério da Saúde. Eu acrescento mais um dado que ajuda a construir no imaginário de várias gerações de mulheres o pavor do desconhecido porque eu tinha esse medo: as novelas adoram cenas de mulheres em trabalho de parto sofridíssimos, sendo empurradas numa maca como se estivessem a caminho da morte. Eu tinha esse medo e descobri que a informação é o melhor antídoto contra uma imaginação destrutiva. “Se a paciente não quer o parto normal de jeito nenhum, não fico dando murro em ponta de faca. A gente tenta trabalhar o medo, mas nem sempre funciona”, diz a obstetra Rachel Reis.

12 de agosto, passam das 13h30. Já sem condições de andar, sento um tanto contrariada numa cadeira de rodas. Se não tivessem me retido por tanto tempo na entrada, eu tinha ido a pé. Estou num elevador, cercada por pessoas estranhas, sendo empurrada por um dos seguranças igualmente estranho porque meu marido ficou lá embaixo respondendo às perguntas da carimbadora maluca. Quando a contração chega, seguro a vontade de pegar na mão de alguém e me lembro que não estou num avião caindo, mas indo dar a luz. Ponho uma cara de paisagem e fecho os olhos. Quando encontro minha médica, as dores já estão fortes à beça (aqui, o leitor pode substituir o “à beça” por uma “locução adverbial de palavrão” para ser mais fidedigno ao que eu quero realmente dizer). Passo para uma maca e sou empurrada por um corredor sem fim. Não acredito que estou numa maca.

Passo por um senhor deitado em outra maca e constato que ainda devo estar longe do meu destino. Definitivamente, ele não tinha um bebê na barriga. Dou um sorrisinho e aceno para ele antes de ser atacada por uma nova contração. Ouço as enfermeiras conversando atrás de mim com voz engraçada de criança. “Ô meu Deus, o que houve?”, diz uma. “É neném…neném querendo nascer!!”.
- É seu primeiro?, uma pergunta.
- Não, a segunda.
- O primeiro também foi normal?
- Sim – digo, com um sorriso no rosto.
- Eu também tive dois de parto normal. É a melhor coisa, me diz ela.
- Melhor coisa, melhor coisa…

No centro obstétrico aparece finalmente meu marido. Como é bom tê-lo ao meu lado. A doula – uma fisioterapeuta treinada em saúde da mulher que me deu assistência também antes e durante o parto (saiba mais sobre doulas). Sento numa bola de pilates e tento relaxar. Deu certo. A médica e a doula me lembram que a contração é uma onda, já está indo embora… A doula começa uma sessão de acupuntura e me surpreendo com uma contração suportável. Vai funcionar, comemoro em pensamento, mas quase arranco o antebraço do meu marido na contração seguinte. “Cadê o anestesista?”, apelo. Minha médica – uma mulher experiente e doce que ainda por cima passou por três partos normais, sendo um sem anestesia – me lembra que falta muito pouco. “Tem certeza? Eu acho que você aguenta, Bebel”. Eu aguento? Talvez, talvez, mas não vou ter tempo de mudar de ideia daqui a pouco… O homem aparece. Quando ele me avisa que, mesmo depois de me anestesiar, ainda sentirei duas contrações fortes e que ainda por cima não posso me mexer durante o procedimento (cujos detalhes tento não imaginar para não impedi-lo de fazer), titubeio. Valerá a pena? Faço uma confissão final tentando transferir para a comida a decisão que eu temia tomar: comi um pouco de estrogonofe. “Não tem problema”. Então vamos nessa.

Meu primeiro parto normal não foi nada fácil. Da primeira contração ao nascimento, levei mais de 24 horas acordada. O cansaço me marcou mais do que as dores em si. Saí da experiência, no entanto, convicta de que faria tudo de novo e certa também de que, a partir daquele momento, eu seria capaz de tudo na vida. Teria sido acometida da tal amnésia pós-parto? Dizem também que é uma dor que a gente esquece. Bem, eu lembrei delas rapidamente já no elevador.

A poucos minutos da chegada da minha segunda filha, a analgesia fez efeito, sem que eu perdesse o controle da situação. Continuei dona da história, protagonista daquele momento. Sorri. Vi meu marido do meu lado e nosso amor em forma de gente sair de dentro de mim.

O Ministério da Saúde deu início a um programa de reciclagem médica para treinar os profissionais do Sistema Único de Saúde em parto normal. São 24 horas intensivas de curso, já ministradas no Distrito Federal e no Rio de Janeiro. A partir de 2010, as universidades também serão obrigadas a garantir um mínimo de treinamento em parto normal dos médicos em formação. Independentemente do tipo de parto, o que me incomoda são histórias de mulheres que nunca terão a certeza sobre a necessidade da cesárea por que passaram quando estavam dispostas a enfrentar o parto normal. Conheci uma moça que estava sendo acompanhada por cinco obstetras porque nenhum deles lhe garantiu que desmarcaria as pacientes dos consultórios para acompanhar um parto sem data marcada. As estatísticas mostram que a maior parte dos bebês nascidos em hospitais privados chega de segunda a sexta, no horário comercial. No dia 12 de agosto, até as 14h30, cinco bebês tinham nascido no hospital onde estávamos. Só o meu parto tinha sido normal.

13 de agosto, 18h – À tarde, deixamos o hospital. Ao pisar do lado de fora do prédio, protegi minha filha do vento seco e quente daquela tarde no Planalto Central. O céu estava azul claro e eu continuava com a sensação de entupimento nos ouvidos, como se estivesse congestionada por um resfriado. Talvez pela força que fiz no parto. Enquanto esperava nosso carro, vi uma moça carregando o seu “pacotinho”. Sorrimos uma para a outra em cumplicidade. Independentemente do parto que tivemos, vivíamos certamente um mesmo sentimento: nossa aventura com aquele filho estava apenas começando.

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